O Globo, edição de quinta-feira, 5 de março de 2009
Uma primeira página especial, a do GLOBO de anteontem. Emblemática e autodemonstrativa, ela sintetizou a crise moral e de costumes que, entre outras, caracteriza essa década inicial do século XXI: as transgressões éticas, a inversão de valores, o cinismo, a afronta ao bom senso. Um prato cheio para quem gosta de leitura semiológica, isto é, dos sinais. No alto, um exemplo típico da barbárie que está se tornando banalidade no Rio: a violência gratuita, sem sentido, sadicamente perversa, como a que foi cometida contra o casal atirado friamente de um penhasco. E, para culminar, o castigo imposto aos assaltantes pelos traficantes, agindo rapidamente como “justiceiros”. Por mais imperfeita que seja a nossa Justiça, nada mais nocivo do que se ter a impressão de que ela pode ser substituída pelo tribunal do tráfico, mesmo num caso como esse. A manchete do jornal anunciava que uma juíza com indiciamento pedido pelo Superior Tribunal de Justiça por corrupção e formação de quadrilha fora promovida a desembargadora por unanimidade pelo Tribunal Regional Federal. O corregedor do TRF não se impressionou com as acusações que pesam sobre ela. A propósito, o que teria a dizer a voz do Supremo, que gosta tanto de se manifestar fora dos autos sobre todas as coisas? Mais abaixo, uma rima rica entre duas fotos: a do funcionário do Senado dono de uma casa de R$ 5 milhões, humilhando-nos com sua capacidade de poupar; e a outra, do presidente do Sudão, desafiando a Corte de Haia. Na que nos diz respeito, alguns dos 250 servidores que foram homenagear Agaciel Maia aparecem alegres e solidários, demonstrando admiração pelo colega que conseguiu o feito de acumular um invejável patrimônio, não importa como. Havia outras pequenas notícias também exemplares, como a da Igreja Católica condenando o aborto da menina de 9 anos. Vítima de estupro do padrasto e de uma gravidez de gêmeos de alto risco, ela configurava uma situação prevista em lei. No entanto, no dia seguinte, o arcebispo de Recife e Olinda excomungou os médicos que realizaram o procedimento. Em nome da vida, ele queria obrigar a menina a correr o risco de morte. Benza-o Deus. Outra notícia igualmente estranha era a da secretária Hillary Clinton pressionando Lula para que ele interceda em favor do pai americano que reivindica a posse do seu filho com uma brasileira. O problema é que o desfecho dessa história, altamente polêmica, depende da Justiça brasileira, e só a ela cabe decidir. Alguém deveria ter perguntado à ex-primeira dama dos EUA se na sua terra é comum o Executivo interferir em decisões do Judiciário. Para encerrar, a foto delle sorrindo, explicando que “volta ao poder com os pés no chão”, mas sem dizer onde vão estar as mãos. Não é uma página-espelho, um diagrama do nosso tempo? (crônica publicada no Primeiro Caderno de O Globo, dia 7.mar.09)
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