Autor: Nelson Sarinho
O que aqui escrevo é o relato da viagem a Portugal que fiz em março passado. É um relato não do que vi, mas do que senti. O patrimônio material, histórico e geográfico de Portugal, como o de qualquer lugar desta nossa aldeia global, pode ser visto nos dias atuais sem que saiamos da nossa casa, com muito mais clareza de detalhes e de informações, de forma fidedigna e uniforme, através dos sítios de busca da internet. Já o pulsar do ambiente sócio-cultural, a alma nacional, necessita da relação interpessoal, necessita do convívio com a gente do lugar. Exige do viajante o desprender de seus hábitos e costumes e de sua visão de mundo, para que possa observar o meio cultural circundante com a mente aberta no intuito de, no dizer do culto afro, incorporar a entidade que paira sobre aquela sociedade.
É claro que, diferentemente do patrimônio cultural que por ser material é o mesmo para qualquer observador, a essência da sociedade, o inconsciente coletivo, será sentido de forma diferente por cada um dos observadores. Creio que é muito difícil, para não dizer impossível, que dois indivíduos percebam essa realidade da mesma forma dada a subjetividade que tal observação açambarca. Sendo assim, este relato é único. É o meu relato. Foi assim que eu vi e senti o povo Luso.
Portugal é um país pequeno, mesmo quando relativizado aos seus congêneres europeus. Possui um território com 92 mil km² para uma população estimada de 10,6 milhões de habitantes. Foi formado a partir do Condado Portucalense, integrante do Reino de Leão, em 1139 sob a designação de Reino de Portugal, possuindo, portanto, 872 anos de história.
Percorri este pequeno país durante dez dias – de quatro a treze de março deste ano – indo de Évora ao sul até Vila Real, ao norte, em uma viagem de caráter cultural cujo propósito era a visitação dos monumentos portugueses tombados pela UNESCO como patrimônio da humanidade. A curiosidade inicial transformou-se em fascínio. Um povo numericamente pequeno que no curso de tão pouco tempo, a considerar a perspectiva histórica dos outros povos da Europa, conseguiu uma projeção de tamanha envergadura, no entorno do século XV, no que se refere às navegações e levou sua cultura para todos os cantos do mundo. Percorrendo esse pequeno território comecei a compreender, a partir da sua história, a essência do que Luis Vaz de Camões cantou nos Lusíadas e Fernando Pessoa no Mar Português.
Vislumbrei a saga de um povo, que mais que povo é uma nação no estrito sentido de grupo de pessoas com características comuns, específicas, ligadas por afinidade de caráter, de índole. Ao visitar seus monumentos históricos que, independentemente de sua titulação, mosteiros, basílicas ou castelos, guardam na sua realidade o destino da glorificação de Deus e o fervor da vida religiosa, se está sempre diante de um ambiente devocional. Reis, rainhas, nobres cavaleiros e plebe, todos eles irmanados diante de uma só fé que consubstanciava e dava um sentido à sociedade, bem como mantinha pacificado o estamento social. O servir a Cristo estava – e ainda agora é presença forte – a permear toda atividade daquele portentoso reino. Seus reis e rainhas não mediam esforços na construção de igrejas e monastérios destinados à glorificação do Cristo crucificado e da Nossa Senhora em suas diversas manifestações.
Aliás, essa devoção a Nossa Senhora, mãe do Salvador, é incorporada ao caráter nacional sob a forma de extrema valoração da maternidade e uma sacralização da mãe em geral que, a meu ver, não tem paralelo em nenhum outro povo. O homem identifica sua mãe com a Virgem e a vê também como uma santa, numa relação simbiótica. Já a mulher, na qualidade de mãe, se identifica com a mãe do Salvador e estabelece com esta uma cumplicidade. Na realidade o que se tem em Portugal é uma devoção marianista. Todo e qualquer acontecimento e monumento importante daquele sítio está imbricado com esta devoção.
Isto pode ser verificado, por exemplo, no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, conhecido como Mosteiro da Batalha, mandado construir em 1386 por D. João I em agradecimento à Virgem Maria pela vitória na Batalha de Aljubarrota, e terminado em 1517 por D. Manuel; no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça ou simplesmente Mosteiro de Alcobaça, com início de construção em 1178, porém por iniciativa de D. Afonso Henriques que em 1147 fez doação das terras para este fim, em agradecimento a Nossa Senhora pela conquista de Santarem; no Convento de Cristo, conhecido como Castelo de Tomar, que tem sua origem em 1162, como propriedade da Ordem dos Templários, passando posteriormente a seus herdeiros, a Ordem de Cristo.
A Ordem de Cristo, fundada em 1319, nada mais é do que um abrigo para os Templários conseguido por D. Diniz, rei de Portugal, através de artimanhas junto ao Papa João XXII. É, indubitavelmente, a responsável pelo domínio dos oceanos de vez que todos os grandes navegadores – Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães, Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Tomé de Souza, Vasco da Gama, etc. – portugueses pertenceram a esta Ordem. Mais; a Ordem de Cristo é herdeira de todo o conhecimento marítimo amealhado pelos Templários na sua tarefa de proteger as rotas que conduziam a Terra Santa. Especula-se até que a Caravela, nau portuguesa que permitiu as grandes navegações, seja projeto da Ordem do Templo.
Como se vê, a motivação religiosa lança Portugal num empreendimento exploratório de tal magnitude que hoje temos dificuldade em compreender como uma nação tão pequena conseguiu se organizar e reunir os recursos necessários para tal feito.
A devoção pela Virgem é tão intensa que em 1646 o rei D. João IV coroou Nossa Senhora da Conceição rainha de Portugal e, a partir de então, nenhum rei português usou a coroa sobre a cabeça. Em todos os quadros que os retrata, a coroa está ou em suas mãos ou apoiada em uma almofada ao seu lado.
Essa devoção pode ser sentida no convívio com os portugueses. No Santuário do Sameiro, em Braga, dedicado à Virgem da Conceição, presenciei uma cena que me impressionou e que ilustra este fato: um homem jovem, talvez trinta e poucos anos, de aparência simples, atarracado, quem sabe um homem do campo, estava de joelhos com as mãos postas na altura do peito, palma sobre palma, na postura típica de oração. Seus olhos revirados olhavam fixamente para a imagem de Nossa Senhora da Conceição localizada no altar mor distante uns cinqüenta metros; balbuciava uma oração enquanto, lentamente, movia-se em direção da Imagem e todo ele era fervor religioso. Tive a nítida sensação que ele, a qualquer momento, sairia flutuando. Não o fotografei, o escrúpulo mo impediu. Não tive coragem de invadir aquele momento de enlevo; o olhar da Virgem fez aflorar os conteúdos místicos que eu soterrei, por sob o entulho do racionalismo, no mais profundo do meu inconsciente; por um fugaz momento convenci-me que não estou de todo desgraçado, ainda tenho esperança de redenção. Salve Maria, cheia de graça...
É na cidade de Fátima, porém, que se vê sintetizada toda essa atmosfera mística, congelada que está no momento mágico em a Virgem se revela a três pastorinhos. O advento é racionalmente ingênuo. Lúcia e os irmãos Francisco e Jacinta, com 10, 9 e 7 anos de idade respectivamente estão pastoreando as ovelhas de suas famílias num local campestre conhecido como Cova da Iria e testemunham as aparições de uma manifestação de Nossa Senhora que se dá no dia 13 dos meses de maio, julho e outubro de 1917. A aparição faz revelações proféticas às crianças – os segredos de Fátima – e pede que elas, em orações, intercedam ao seu Sagrado Coração pela salvação da humanidade. Pede ainda às crianças que ofereçam sacrifícios em intenção da conversão dos pecadores. Francisco falece aos 11 anos de pneumônica (gripe espanhola). Jacinta falece aos 10 anos depois de prolongada doença; consta que, já à morte, recebe uma visita de Virgem de Fátima que lhe indaga se queria converter mais pecadores com o sacrifício de sua doença. Lucia recolhe-se ao Carmelo de Sta. Tereza, em Coimbra, e vem a falecer em 2005 aos 98 anos.
Esta é, em síntese, à história que dá origem a devoção marianista de Fátima. Essa narrativa inverossímil do ponto de vista da razão é, no entanto, objeto de veneração para milhões de pessoas que acorrem anualmente ao santuário de Nossa Senhora de Fátima e tem motivado e confortado, unicamente pela fé, a vida dos milhões de homens e mulheres que ali comparecem como devotos. Não está e nunca estará em discussão o mérito do acontecimento. Ele é, antes de tudo, real há gerações de crentes. É uma realidade psicológica construída pela fé das multidões de peregrinos que foram, vão e continuaram a buscar nos Mistérios um bálsamo para o seu sofrimento ou simplesmente, em êxtase, se postar diante da imagem da Virgem com a mais absoluta das certezas: Ela apareceu e permanece aqui!
A religiosidade do português, espraiada por todos os cantos do país, que coloca o postulado da fé acima do da razão é captado magistralmente por Bernardo Soares, ajudante de guarda livros na cidade de Lisboa, semiheterônimo do Fernando Pessoa que no 'Livro do Desassossego' diz o que segue: "A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível". (Fonte das fotos: internet)
Um comentário:
Mandou muito bem, Sarinho, como sempre!
Saudações lusas pra vc.
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