sexta-feira, 4 de março de 2011

Nem tudo o que flutua é um Ark Hotel


Publicado em Obvious, Arquitetura, por Miguel Oliveira

Nem tudo o que flutua é um hotel. Pois bem: neste caso, é. Não um barco de cruzeiro, não o iate de um milionário qualquer. Aqui agarramos o touro pelos chifres e passamos a habitar a superfície das águas invasoras. O Ark Hotel transforma a arca da salvação das espécies num elegante bio-hotel, onde até Noé é um passageiro VIP. 

Não vale a pena dizer «Não posso crer!» que o nível do mar está subindo. Se o nível do mar está subindo, logo menos espaço terrestre nos sobra – aos incautos humanos e às cândidas outras criaturas. Ora, numa espreitadela futurista saltamos sobre o invasor e passamos a habitá-lo. Conheçam por dentro e por fora le nouvel Ark Hotel. A arquitetura deparou-se com um periclitante novo paradigma. O mundo não suporta mais repentinas ventanias e está cada vez mais semelhante a um castelo de cartas. Os tempos passados comprovam ciclos naturais marcados por apoteóticas catástrofes e, alegam uns e comprovam as estatísticas da frequência de calamidades, um novo ciclo está iminente.

Concordemos que de tempos em tempos todo o ser inteligente se livra das impurezas e que o dilúvio bíblico não é o único relato de uma enchente planetária. Hoje em dia o ser humano detém a tecnologia suficiente para, pelo menos, adiar este exorcismo. Podemos parar de fazer comichão e sermos nós próprios a purificar, a enxugar, o planeta. Está na altura de reunir esforços para um futuro mais estável. Ou não. E é da fria Rússia que chega o protótipo flutuante – o Sputnik dos hotéis.



A Rússia nunca desejou manter uma paz fingida e já ninguém tem paciência para rixas bélicas. É precisamente desta neve que chega o calor do futuro, da preservação da espécie humana – sem fronteiras, sem seleção, sem geopolitik. É um projeto aberto ao mundo, open source, onde cabemos todos, sem a artificialidade seletiva de um perecido Noé, ou pseudo-conspirações hollywoodescas 2012. É hoje, na Rússia, que nasce o Ark Hotel.

Imerso nesta tomada de consciência, o escritório de arquitetura Remistudio desenvolveu, dentro no âmbito do programa Architecture for Disaster Relief, o conceito de um hotel flutuante, com uma bela e extravagante estrutura em forma de arco e uma parte inferior semelhante ao casco de um navio, aguentando marés fortes e desastres “naturais” (joguemos "vamos-enumerar-recordações-de-catástrofe-naturais" e ver se isto faz sentido).

A arquitetura deste hotel permite a sua construção na água ou em terra firme. Quando em terra firme, o Ark Hotel pode ser utilizado em zonas de grande incidência de terremotos, porque seu esqueleto de cabos de aço e arcos de madeira comprimidos permite que a energia do terremoto seja distribuída por todo o corpo do edifício. O Ark Hotel ergue-se a cerca de 30 metros de altura.




Uma eco-construção de tal envergadura foi pensada como um conjunto de etapas sequenciais. Uma unidade de transformação de energia térmica em energia elétrica é o suporte central energético de onde toda a disposição recebe a energia necessária. Segue-se a montagem da coluna vertebral, feita de arcos de madeira e cabos de aço comprimido, seguida da cobertura, transparente como convém à maximização da penetração da luz natural - 3.200 metros quadrados de área cobertos por uma película mais leve que o vidro, o etileno tetrafluoretileno. O Ark Hotel é uma bonita estrutura, em forma de concha.

O edifício é retro-alimentado com um sistema de reutilização de água da chuva e placas fotovoltaicas instaladas na cobertura. Claro, isto é um hotel – tem quartos, distribuídos em quatro andares. Quando se acorda pela manhã e se sai de sonhos levemente ondulantes para o desjejum atravessa-se o jardim interno – uma biosfera tipo estufa –, povoado por uma flora luxuriante e animais, toda esta natureza escolhida de acordo com as diversas características de compatibilidade, reprodutibilidade, fornecimento de fontes de alimentação, eficiência de produção de oxigênio etc. Os pássaros voam livremente dentro deste hotel e as tulipas não morrem lentamente em jarras de cristal.

Esta estrutura futurista destaca-se pela autonomia ou, como diz Alexander Remizov, do Remistudio, ao Daily Mail, pelo “sistema de suporte de vida independente”, garantindo aos seus “hóspedes” sobreviver (viver) a bordo durante meses seguidos. Talvez tempo suficiente para os presentes tempos.

De preferência, que não tenhamos a necessidade de colocar o pé nesta apetecível e pacífica arca, mas, de qualquer forma, é bom saber que temos um ponto na praticamente inevitável curva exponencial do suicídio coletivo. A tomada de consciência ou foi ontem, ou não foi. E não nos enganemos mais. Não é catastrofismo, é o tapete encardido que estendemos para nós próprios. Cada um de nós, mea culpa.





Por fim – enquanto nada de definitivo resulta das nossas ações para pacificar a relação com o único habitat que temos, há que encontrar soluções urgentes e simbióticas. Esta mini-utopia é uma manifestação de que é possível coexistirem humanos e restante natureza no mesmo planeta. O exemplo é excelente – eco-friendly é possível. Felizmente, temos “hotéis-arca”: um sítio agradável para passar as mais longas férias da história da humanidade.

Todos a bordo! Mais trabalhos no site do escritório de arquitetura ►Remistudio◄  criador do projecto.

Nota: não confundir este projeto com um outro Ark Hotel, edifício anti-sísmico construído em Changsa, China.

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