Lembram do juiz que anos atrás entrou na justiça contra o condomínio em que mora, por causa do tratamento "você" dado pelo porteiro? Depois de ter conseguido uma liminar, no fim a Justiça prevaleceu. Vejam os fatos e as repercussões.
Artigo publicado na revista Isto É Independente, edição 1832, de 17.nov.04 - Diz Paulinho da Viola numa das mais exatas páginas da música popular brasileira: “Tinha eu catorze anos de idade/quando meu pai me chamou/perguntou-me se eu queria/estudar filosofia/medicina ou engenharia/tinha eu de ser doutor/mas a minha inspiração/era ter um violão/para me tornar sambista/o meu pai então falou/sambista não tem valor/nessa terra de doutor/de seu doutor... ” Pois é nessa terra brasileira, nessa “terra de doutor” e de “seu doutor”, que o doutor juiz Antonio Marreiros da Silva Melo Neto, da 6ª Vara Cível de São Gonçalo, entrou na Justiça para obrigar funcionários do Edifício Luíza Village a lhe chamarem de doutor (ele abriu mão do respeitoso título “seu” antes do título “doutor”). O doutor Da Silva Melo Neto perdeu em primeira instância. O doutor Da Silva Melo Neto recorreu ao Tribunal de Justiça. O doutor Da Silva Melo Neto ganhou uma liminar, e isso significa que, até o julgamento final sobre como ele deve ser chamado, fica valendo o doutor. Outra decisão da Justiça diz que funcionários do condomínio, a síndica Jeanette Granato e o próprio advogado do doutor estão proibidos de comentar o processo sob pena de multa diária de R$ 1 mil. Diz a liminar: “Antes de ser direito do agravante, mas um dever, e verificando-se nos autos que o mesmo vem sofrendo enorme desrespeito por empregados subalternos (...) mas também desacatos (...) defiro-a.” O “agravante”, no caso, é o doutor, no país de “seu doutor”; “subalternos” são os não-doutores, os “sambistas” da música de Paulinho. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Miguel Pachá, disse que o doutor Da Silva Melo Neto deveria desistir da ação. Como o edifício tem de se defender na Justiça, o valor do condomínio (hoje de R$ 270) vai ter de subir. O doutor Da Silva Melo Neto alega que funcionários o desrespeitam e que sabotaram os pneus de seu carro. Se isso aconteceu, o doutor Da Silva Melo Neto tem todo o direito de ir à Justiça queixar-se desses fatos e os responsáveis devem ser punidos. Mas exigir o dê-erre-ponto antes do chamamento, isso é vaidade e não impede que o continuem sabotando. Se o doutor ganhar a ação, definitivamente, acrescenta-se aqui o final do verso do samba do bamba Paulinho: “O meu pai tinha razão...”.
Vejam no que resultou lendo a sentença do juiz Alexandre Eduardo Scisinio: Processo distribuido em 17/02/2005, na 9ª vara cível de Niterói - RJ / Poder Judiciário do Estado do Rio De Janeiro - Comarca de Niterói - Nona Vara Cível / Processo n° 2005.002.003424- 4
S E N T E N Ç A
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de "senhor".
Disse o requerente que sofreu danos e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ' Doutor, senhor" "Doutora, senhora", sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (...)
DECIDO: "O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter." (Noberto Bobbio, in "A Era dos Direitos", Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo.
Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito.
Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.
Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida.
"Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de 'doutor', sem o ser, e fora do meio acadêmico.
Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa e homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame.
Por outro lado, vale lembrar que "professor" e "mestre" são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado. Embora a expressão "senhor" confira a desejada formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por "você", pode estar sendo cortês, posto que "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social. O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe "semi-culta" , que sequer se importa com isso.
Na verdade "você" é variante - contração da alocução - do tratamento respeitoso "Vossa Mercê". A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas freqüências do pronome "você", devem ser classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente. Na edição promovida por Jorge Amado "Crônica de Viver Baiano Seiscentista", nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que "você" é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de "você" e "senhor" traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. P.R.I. Niterói, 2 de maio de 2005.
Alexandre Eduardo Scisinio/Juiz de Direito (colaboração de Joel S.J.)
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